Sigilos e servidores: por que isso importa?

Recentemente eu e os membros da Chaos Girls tivemos uma conversa a respeito da definição de servidores. Será que servidores possuem uma personalidade? Será que eles podem sair por aí livremente, sem ser alimentados e controlados pelo seu criador, transformando-se em outras coisas?

Eu usei o exemplo do Fotamecus, talvez o servidor mais famoso na magia do caos. Fenwick Rysen conta que Fotamecus começou como um sigilo, se tornou um servidor e depois uma egrégora. Atualmente ele tenta se tornar um Deus e seu maior obstáculo para isso é Chronos. Fotamecus e Chronos estão em guerra, batalhando pela supremacia do tempo. Enquanto isso, Fenwick Rysen observa tudo com interesse e confessa que seu servidor já saiu do seu controle há muito tempo. Talvez ele mesmo seja controlado pelo seu servidor. Não que ele se incomode muito com isso.

Mas a discussão não termina por aí. E se um servidor for programado para não ter personalidade ou para jamais sair do controle do seu criador? É possível, é claro. Ou, como se costuma dizer, tudo é permitido, desde que você não seja pego.

Existe um debate parecido sobre a questão dos sigilos. Austin Osman Spare não foi exatamente o inventor dos sigilos, mas ele pegou esse termo emprestado e atribuiu a ele um significado muito particular. Ele criou um método de sigilização que tornou-se tão célebre a ponto de toda vez que um magista do caos utiliza a palavra “sigilo” muito provavelmente ele se refere à definição e método de Spare.

Alguns magistas do caos argumentam que não é necessário esquecer os sigilos depois de usados. Eles podem usar os sigilos (e, por que não, os servidores?) da forma que quiserem, porque “tudo é permitido”. Seguindo esse raciocínio, seria possível dizer: “um servidor/sigilo pode fazer isso SIM ou NÃO pode fazer aquilo de forma alguma” e tudo dependeria do paradigma que você adota, que pode tanto quebrar regras quanto construir muros. As duas coisas podem ser úteis dependendo de seus objetivos.

Isso tudo me lembra a velha discussão sobre arte. Afinal, o que é a arte? Um urinol ou uma roda de bicicleta só vira arte quando é colocado num museu? Posso quebrar ovos no chão e chamar de arte?

Se arte pode ser qualquer coisa, qual o sentido de existir uma palavra chamada “arte”? Mas se a arte tem tantas amarras, será que não vamos nos sentir claustrofóbicos com algo assim?

A ideia de arte, de sigilos e de servidores é geralmente oposta à ideia de claustrofobia (a não ser que você tenha a intenção que sua arte, sigilos e servidores sejam claustrofóbicos propositalmente, com alguma intenção ou mesmo sem nenhuma). A maior parte das grandes religiões possuem muitas regras e dogmas. Para muitos, isso é desconfortável, então eles deixam essas religiões de lado e buscam o ocultismo.

Acontece que a magia tradicional ainda pode soar um pouco limitadora para alguns. A cabala, a astrologia, a alquimia, as correspondências entre cores, planetas e números possuem seus fundamentos num universo com leis determinadas e no qual reina a ordem. Você deve seguir certas regras para que sua magia funcione, as tais “leis do mundo espiritual” que pode ir desde as leis herméticas, karma até a lei tríplice wiccana.

Quem se sente atraído pela ideia de que não somente a ordem governa o mundo físico e espiritual, mas também a desordem e o caos (talvez uma Deusa como Éris governe o mundo ou talvez os espíritos sejam anarquistas e não exista governo?), pode se sentir inclinado à magia do caos.

Então você aprende sobre sigilos e servidores e descobre que há certas regras para lançar sigilos e alimentar servidores. Você não gosta delas e quer fazer as coisas do seu jeito.

Muito bem, faça do seu jeito! É esse mesmo o espírito. Como diz Jaq D. Hawkins, Spare não necessariamente criou seu método de sigilização para que as pessoas fiquem repetindo seu passo a passo, como se fosse um método religioso. A ideia é exatamente oposta! Inspire-se no método dele, pode até testá-lo, mas o objetivo final (se há de fato um) seria você criar sua própria forma de magia criativa.

Autores como A.O.S., Peter Carroll e Ramsey Dukes são o mais próximo que temos de uma “Bíblia” de magia do caos (bem, você também pode adotar o Principia Discordia, RAW, Leary e muitas outras produções pré-magia do caos nas quais os fundadores do caoísmo se inspiraram. O próprio Spare fez parte delas).

E para que serve essa Bíblia? Para seguirmos as regras do Principia Discordia e repetirmos que o que está escrito lá é o certo ou a verdade? Assim passamos a defender que é o caos que governa o mundo e não a ordem! Ou que caos e ordem se alternam e essa é minha verdade! Ou que minha verdade é que ninguém sabe nada e qualquer um que clame o contrário é mentiroso! Incluindo eu mesmo!

Nós temos todos esses autores e livros fantásticos como fontes de inspiração e não para nos prendermos a eles. Podemos usar sigilos da forma que nos sugere Spare e eles podem funcionar. Podemos ficar satisfeitos com isso e não há nada de errado.

Mas também podemos criar nossa forma de sigilizar. Se preferirmos, podemos criar um outro nome para ela, para evitar os frequentes atritos com magistas do caos puristas dizendo “não-é-assim-que-se-faz-leia-Spare-pratique-Liber-MMM-isso-não-é-magia-do-caos-é-só-bagunça”.

No caso dos servidores, as possibilidades nos parecem ainda mais amplas, já que não existe exatamente um autor consagrado (o equivalente a Spare em relação aos sigilos) que sugira a forma certa de criar um servidor ou suas definições.

Eu costumo chamar muitas coisas de servidor e transformar em servidor as mais variadas coisas. Às vezes eles começam como personagens de um livro. Como uma palavra. Bem, então alguém vai dizer: “mas a definição para tal e tal não é servidor, é hipersigilo, ou Fnord, ou…” está bem! Você pode estar certo. A razão de ser das palavras e da linguagem é possuir certo grau tanto de liberdade quanto de limitação da definição. Senão a comunicação fica difícil.

Muita gente critica magistas do caos que a única coisa que fazem (ou parecem fazer) é criar sigilos e servidores, assim como debater sobre eles. De fato, são áreas interessantes e que funcionam. Se uma pessoa quer se focar nisso, por que não? Por mais que a magia do caos fale sobre ser criativo e criar novos sistemas de magia, ninguém é 100% original e a maior parte do que inventamos (possivelmente tudo?) nós pegamos emprestado de algum lugar. O truque é pegar emprestado de tantas fontes e misturar tanto que ninguém percebe seu plágio. A maior parte disso ocorre inconscientemente.

É possível ser extremamente criativo e efetivo mesmo dentro de paradigmas mais ou menos fechados como sistemas pré-prontos (o caso de sigilos e servidores). Tem gente que não se sente claustrofóbico com isso, assim como muitos não se sentem presos na cabala, astrologia ou religiões tradicionais que definem certas regras.

No budismo se costuma dizer que o corpo não é uma prisão, mas é exatamente porque temos um corpo que podemos chegar à libertação. Nós podemos criticar as limitações da razão e da linguagem, mas nem por isso deixaremos de usá-las para buscar a liberdade. Podemos também experimentar usá-las de formas novas, como nos koans que questionam nossa lógica ou na criação de sigilos e servidores que funcionam de forma tão estranha que desafiam tudo o que achávamos que sabíamos.

O seu foco pode ser apenas: que minha magia funcione e pronto, usando algo semelhante ao método científico, sem preocupação em ser criativo. Está certo. Ou quem sabe você tenha um lado artístico e experimental que se foque mais na beleza do que no pragmatismo. Também está certo. Na magia do caos você usa o que funciona, mas talvez o que funcione para você é desafiar suas concepções sobre arte, beleza e liberdade. Assim você enxerga o mundo de novas perspectivas e altera a forma que interage com ele e que vê a si mesmo.

Faça o que quiser: crie um servidor que não se comporta como um servidor (segundo as definições “clássicas”). Crie outro nome pra ele ou chame de “servidor” só para provocar. Seu servidor pode ter filhos, pode se alimentar sozinho, pode se tornar o Deus de seu criador. Então ele não é mais seu “servidor” por não servir mais você? Sim, isso ocorre ao menos nos domingos, porque ele está de folga. Nas férias de verão ele vai te matar, vocês vão trocar de corpos e almas. Na verdade isso já aconteceu. Você é um servidor. Eu também sou.

“Eu como buracos negros no café da manhã” diz Bob. Por enquanto você só devora cometas, porque está de dieta. Mas quando enjoar de sua saladinha espiritual, nenhuma galáxia escapará de seu prato.

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